Rio de Janeiro, Fevereiro e Março: os piores meses da história da cerveja artesanal?

Bernardo Couto, proprietário da cervejaria cigana 2 Cabeças, expõe sua visão sobre as complicações e desafios do mercado artesanal na cidade do Rio de Janeiro.

Conteúdo publicado originalmente no blog Cerveja de Graça, de Bernardo Couto.

Cidade maravilhosa, purgatório da beleza e do caos, cidade desespero… O que não falta é música com apelidos para essa cidade incrível. Minha cidade, onde nasci e cresci. Onde eu não moro mais, mas o sotaque continua afiado. Aliás, onde muita gente que conheço não mora mais, saindo aos poucos na última década. Mas vamos falar de coisa boa, vamos falar de cerveja.

Cidade dos botecos, do chope gelado na calçada, do bolinho de bacalhau, do sambinha improvisado ou requintado. Falando de cerveja artesanal, cidade das cervejarias ciganas. Aliás, por que não dizer assim?

Hoje o Rio de Janeiro tem a maior quantidade de cervejarias ciganas por bares falidos do Universo.

Conversei com muita gente do mercado nos últimos tempos sobre isso, naturalmente, em conversas informais, então não vou identificá-los (e nem precisa, pois são inúmeros exemplos por aí, selecionei só alguns). Não vou aqui buscar números precisos, até por não existirem muitos no nosso mercado.

Lembro bem de uma conversa, em 2018, com um dono de bar que está no mercado há uns anos já. Ele me contou que no ano de 2017, fevereiro foi o pior mês dele. Era algo dentro do esperado, e que foi um ano razoável, mas em geral mais fraco que 2016. Porém, em 2018, até o dia que conversamos, nenhum mês tinha chegado perto daquele fevereiro do ano anterior, e depois só caiu mais. O PIOR MÊS DE 2017 FOI MELHOR DO QUE O MELHOR MÊS DE 2018. Pronto, em caixa alta pra ficar bem claro!

A média que ele me passou foi de ficar 50% abaixo do faturamento projetado para 2018. O que obviamente inviabiliza o negócio. Vieram demissões, torneiras vazias e trabalhar com zero estoque para não quebrar. Não tenho coragem nem de perguntar como as coisas estão em 2019, mas a última informação que tive foi a vontade, real, de fechar. Abrir e fechar negócios é natural, é do mercado. O problema é quando estão quase todos com a corda no pescoço…

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Comprar na baixa e vender na alta. Até a Bettina sabe disso muito bem, é a regra básica do bom negócio. Mas onde é a baixa? Lembro de ter pensado no final de 2017: “nossa, ainda bem que esta acabando, 2018 não pode ser pior”. Foi, e muito. E o início de 2019 foi ainda mais pavoroso, mas já aprendi que sempre dá para piorar. Que venha 2020 ou o meteoro, o que vier primeiro. E a conversa se repete com diversas marcas do Rio, é o padrão hoje.

Outra cervejaria cigana do Rio, atuando há cerca de dois anos, me confirmou que fevereiro e março de 2019 foram os piores meses de operação até então. Nesse cenário, como essas dezenas de pequenas marcas ciganas vão conseguir sobreviver? Será que vão? Várias encerraram as atividades. Fábricas também. É natural que aconteça em alguma escala, mas agora a meta para a maioria é apenas sobreviver. Crescer é para poucos, e muitas vezes, por pouco tempo.

São litros e mais litros sendo produzidos. Poucas torneiras para dar vazão e pessoas evitando gastar. Resultado: são litros e mais litros estocados e, como já ouvi certa vez, uma “briga de foice no escuro” para tentar fazer girar e conseguir produzir de novo. E entrar novamente na ciranda de baixa margem e aposta em um dia conseguir transformar aquilo em um negócio rentável, de fato.

Um parêntese para meus dois centavos sobre o cenário carioca atual. É uma cidade extremamente cara para se viver e com salários não tão interessantes. Logo, o poder de compra é baixíssimo neste momento, pois sobra menos para consumir. Aliado a isso, temos uma cidade em que muita gente vive de renda: aluguel de imóveis herdados, pensão familiar militar… Ou seja, não precisam produzir pois tem uma estabilidade financeira. A cidade é muito segmentada, com a Zona Sul e Zona Oeste (Campo Grande, Bangu, Santa Cruz…) parecendo ser países distantes tamanho o abismo de realidades.

Muita gente ligada ao petróleo perdeu emprego ou diminuiu a renda, entre outras áreas afetadas pela crise, e essa bola de neve atinge violentamente o comércio assim que o consumo cai. Sim, ele como um todo, não é privilégio do mercado de cervejas artesanais. As constantes notícias ruins e pouca estrutura afastam os turistas. A falta de programas inclusivos dos governos municipais e estaduais geram ainda menos gente na rua e com menos dinheiro circulando. Com uma total omissão e falência estatal, a violência estoura. Hoje, em muitos locais, o chope gelado na calçada só existe se o bar tiver um segurança particular na porta.

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E voltando para a cerveja, para fechar, temos um prefeito bispo da Igreja Universal, completamente contra bebida alcoólica, sendo eleito, incrivelmente, com muitos votos de pessoas do mercado. #prontofalei

Seleção natural fará parte da trajetória do mercado

Segundo Felipe Freitas, analista do portal do mercado de cerveja Catalisi, acontece uma seleção natural e houve uma diminuição do número de novas ciganas entrantes.

Para ele, vários fatores tornam o terreno muito complicado, como valor do metro quadrado alto, inadimplência, bares quebrando e falta de visão de longo prazo de algumas cervejarias além da própria posição intermediária da cigana na cadeia de valor. Existe, assim, uma questão bem própria do mercado fluminense que não é sustentável: inúmeras fábricas voltadas apenas para produção terceirizada. “Não sei o quanto essas fábricas se financiaram para a empreitada. Provável que alguns tentem se lançar a mercado pra conseguir monetizar o ativo, porém isso se torna uma tarefa bem difícil, uma vez que isso poderia não estar no planejamento inicial. Uma solução intermediária é trabalhar com ‘white label’ que já consegue atingir até pontos de venda não especializados”, analisou Felipe.

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Quantas e quantas matérias saíram e ainda são publicadas sobre o crescimento do mercado… Finalizo com a história de um amigo dono de uma cigana de São Paulo. A repórter ligou para ele com uma pauta sobre o que? O crescimento do mercado, claro! Ele falou bastante tempo sobre a visão dele, de que diversas marcas estão estagnadas ou regredindo, lutando para sobreviver, com vendas muito diluídas num mercado ainda pouco consolidado. Que existem muitos entrantes no mercado, e que aparece para quem está fora que é sinal de crescimento, mas é bem assim. Alguns crescem? Sim, mas são poucos. Falou também que muitos dados de volume de várias marcas que saem nas matérias não condizem com a realidade, mas dão uma áurea de sucesso geral. Resultado? Saiu a matéria sem nenhuma fala dele, apenas com depoimentos de quem defendeu o crescimento.

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