A cervejaria 2 Cabeças fundada na cidade do Rio de Janeiro em 2012 foi uma das primeiras a refletir em produção comercial a influência do movimento de cerveiros caseiros que possui grande força na cidade.
De certa maneira, a trajetória percorrida pela 2 Cabeças reflete a jornada de evolução do modelo chamado de “cervejaria cigana”, que se iniciou num formato bastante fluido e com o passar do tempo têm ganho maior complexidade no sentido de oferecer maiores vantagens para ambos os lados do negócio – o fabricante e o terceirizador .
Cervejarias ciganas, para aqueles não familiarizados com o termo, é como de forma geral são chamadas na linguagem de mercado as cervejarias que terceirizam 100% de sua produção, e algumas vezes por isso utilizam diversas fábricas ao longo de sua história.
Atraente de um ponto de vista devido baixas barreiras de entrada, a produção cigana de cerveja apresenta um série de desafios, principalmente quando os mercados se tornam mais concorridos. Neste ponto, um posicionamento bem construído é crucial para manter produtos atraentes e estratégias competitivas.
A 2 Cabeças foi uma das primeiras cervejarias do Brasil a apostar no modelo cigano, sendo a primeira do Rio de Janeiro a embarcar na produção totalmente terceirizada. Nesta entrevista Bernardo Couto, co-fundador da marca relata a evolução do seu modelo de produção, as dificuldades de mercado enfrentadas pelo cigano e a parceria construída com a cervejaria Invicta, onde suas cervejas são produzidas atualmente.
“Essa época não tinha quase ninguém. Tinha uma Colorado, Wals, Bamberg, umas referências tipo a Coruja e a Seasons. Tinha lido que lá fora rolavam cervejarias que produziam sem fábrica. “
Se hoje ainda se pode considerar que o mercado de cerveja artesanal ainda é iniciante no Brasil, em 2012 quando a 2 Cabeças procurou sua primeira fábrica para produzir, saindo da experiência de associações de cervejeiros caseiros, a estrutura preparada e o conhecimento sobre o modelo eram inexistentes.
“No início tanto nós quanto as cervejarias que nos atendiam não sabíamos muito como lidar com o esse modelo de negócio. Tudo começou com um espaço de disponibilidade que havia na primeira cervejaria que conversamos (a cervejaria Alegra na zona oeste do Rio). A partir dali começamos a desenhar a operação, mas não tínhamos um nível avançado de planejamento” declara Bernardo.
O modelo inicial da 2 Cabeças era totalmente fluido criado a partir de conversas com os fabricantes. Em certas ocasiões os fundadores da 2 Cabeças (que além de Bernardo contou com Salo Maldonado, posteriormente fundador da cervejaria Motim) precisavam convencer as cervejarias que era interessante abrir espaço para a produção deles, coisas que atualmente, como comenta Bernardo, “ninguém mais precisa fazer” ao menos na cidade do Rio.
“Hoje em dia no Rio, pelo contrário, você têm cervejarias construídas com o objetivo apenas de atender os ciganos, mas naquela época você ia lá batia na porta e via se tinha alguém pra te receber.”
Ainda com um planejamento inicial pouco elaborado a 2 Cabeças tinha uma vantagem para o início de sua trajetória que era uma distribuidora que pertencia a um dos sócios, facilitando o escoamento do produto.
“Nessa parte o Salo já tinha uma distribuidora, nessa fase inicial a cervejaria funcionou totalmente através dessa distribuidora que já estava montada. Ela já tinha vendedores, tinha uma estrutura básica. Nesse início nós só tínhamos barril e trocávamos bastante de fábrica por diversas razões. Rolava uma produção bem intermitente”
Bernardo comenta que no início as produções da 2 Cabeças tiveram diversos intervalos entre elas, ocasionando um intermitência na comercialização do seu produto.
“Nossa primeira produção foi de mil litros e vendeu muito rápido, daí acabava que ficávamos um mês sem produto, já o o segundo já levou 3 a 4 meses. Durante o primeiro ano foi bastante assim.”
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“Fizemos uma Black IPA como primeiro rótulo como questão de posicionamento, queríamos mostrar que não estávamos ali pra brigar com marcas que já estavam estabelecidas com alguns estilos um pouco mais usuais como uma Weiss por exemplo.”
Uma decisão que a 2 Cabeças tomou de início foi a de se posicionar através do estilo de seu primeiro rótulo. A Black IPA High Five foi o ponto de partida do seu portfólio, nesse início de abordagem do mercado. O fundador comenta que nessa época sequer as IPAS possuíam muitos exemplares na cidade, logo sua Black IPA não tinha nada que fosse semelhante disponível ao público naquele momento.
No início de construção do portfólio da cervejaria a sua segunda cerveja se tornaria o carro chefe da marca, já anunciando a popularidade que seria estabelecida entre as IPAs neste segmento de mercado. A Maracujipa que, como o nome denota além de lúpulos cítricos tem a contribuição de maracujá em sua elaboração, se tornou companheira da High Five entre os produtos da 2 Cabeças, ambas apenas em barril.
“A Maracujipa foi o rótulo seguinte (a High Five), mas ela só veio no final de 2012. As duas juntas em garrafa só vieram em 2013, até ali elas vinham só em chope”
Crescimento do portfólio é um desafio inicial importante de cervejaria cigana que inicia com apenas um rótulo. O montante financeiro necessário para a construção de um portfólio que conviva ao mesmo tempo no mercado é praticamente impossível de ser montado a partir apenas do faturamento adquirido da produção inicial, como comenta Bernardo.
“Isso foi uma coisa bem complexa. No início como a gente fez uma produção só, foi bem tranquilo. Cada um foi lá colocou 10 mil reais pra produção lá, fez e vendeu. O problema é você manter três, quatro rótulos em produção criando um estoque muito grande com fluxo de caixa apertado. A gente fez alguns aportes iniciais e tiveram sócios entrando com aportes maiores.”
O fundador da 2 Cabeças se estende sobre o desafio da gestão financeira da produção de uma cervejaria cigana.
“Esse é um grande desafio do cigano. Quanto mais ele cresce mais complicado ele fica porque necessita de muito dinheiro girando com uma margem muito baixa. O fluxo de caixa do cigano é bastante desfavorável contratando a produção, porque ele sai pagando tudo de cara, para receber depois de forma fragmentada”
A terceirização de produção de bebidas, da qual a cervejaria cigana é um de seus exemplares, não é nada incomum. Ao se pensar em grandes marcas como Coca-cola e Red Bull, por exemplo, a terceirização é a tônica para expansões de mercado, onde as empresas controlam apenas a marca e licenciam suas produções mediante rigorosos padronizações de processo.
Dentro do mercado da cerveja artesanal, terceirizações também são utilizadas para complementar produções em regiões geográficas específicas, como no caso da Samuel Adams nos Estados Unidos, ou para expansões para fora do país como faz a Brooklyn no Brasil. Em se falando de cervejaria cigana um desafio é que sua produção é totalmente dependente da terceirização, e na maioria das vezes em escalas reduzidas.
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“Uma das grandes deficiências do modelo cigano é que você está ali no meio da cadeia. Você não têm uma fábrica e muitas vezes não tem um ponto de venda, uma parte física onde o público consegue ir lá visitar o que cria uma relação mais próxima com o consumidor. Nesse sentido você acaba sumindo um pouco.” declara Bernardo
No aspecto financeiro o co-fundador da 2 Cabeças analisa dificuldades do mercado devido a baixa barreira de entrada no modelo cigano favorecer uma produção apenas como hobby, o que, em momentos de necessidade de queima de estoque, prejudica marcas que tratam o mercado de forma profissional.
“Acaba que muitos desistem disso, mas muitos entram também, o que acaba gerando uma busca meio vaidosa pelo produto na prateleira. Fazer uma boa cerveja não é tão complexo. Difícil é você construir uma marca e contar uma história com um produto que faça sentido.”
“Na primeira fase lá [na Invicta], a gente comprava a produção e se virava pra vender. Daí evoluindo nas conversas com eles vimos que pra fábrica era bom ter uma produção constante e fixa.”
Após a experiência em diversas fábricas e até uma passagem na própria Invicta, Bernardo comenta que ocorreu um retorno para a cervejaria de Ribeirão Preto juntamente a um desejo mútuo que o modelo de parceria avançasse para um maior nível de sinergia.
“Num retorno após nossa primeira passagem lá, nós declaramos que gostaríamos de voltar e eles também demonstraram um interesse, mas disseram que queriam montar um modelo diferente.”
Ele se estende explicando melhor as características da transição de seu modelo de negócio com a Invicta.
“Na primeira fase lá [na Invicta], a gente comprava a produção e se virava pra vender. Daí evoluindo nas conversas com eles vimos que pra fábrica era bom ter uma produção constante lá e fixa, o que ajuda nos planejamento de fluxo de caixa e da rotina de produção e pra gente é interessante que eles cuidem do estoque e distribuição porque eles têm toda estrutura, dinheiro e know how pra isso”
O desenho para chegar a esse modelo não foi criado da noite para o dia e o aprendizado para evolução da qualidade do acordo levou tempo para que fosse definido.
“A gente sentou e conversou e levou alguns meses até chegarmos no modelo que a gente achava que funcionaria e no meio do caminho, é claro, que a gente fez vários ajustes. Foi um modelo que, um tanto, ao menos aqui no Brasil foi pioneiro.”
Nesse ponto Bernardo toca numa questão chave para melhoria de condições do modelo cigano, o uso de criatividade no modelo de negócio. A contratação por lote pura e simples costuma ser desvantajosa para a cadeia do cigano e não otimiza as condições de operação da fábrica, logo a faixa onde ambos ganham de maneira mais racional pode ser alvo de potenciais negociações e modelos baseados em diferentes tipos de trocas podem ser construídos.
“O grande lance é montar um modelo onde a fábrica quer que você cresça, como a relação mais profunda que geramos com a Invicta. O modelo que construímos com eles gera isso, quando o portfólio de produção da fábrica é planejado não se olha segmentando por cervejaria e sim avaliando o portfólio da fábrica inteira”
O fundador da 2 Cabeças continua sua explicação sobre o modelo de parceria estabelecido e como ele atinge toda a cadeia de valor da cervejaria.
“Hoje a venda é toda através da Invicta. Então hoje se um distribuidor de São Paulo ou de Minas comprar não passa nada pela gente. A gente tinha a distribuição de vendas no Rio de forma independente, mas poderia ser qualquer outro. E a gente tem um recebimento de royalties por produto vendido ao final do mês.”
Nesse formato se percebe que uma parcela do ganha-ganha do modelo é construído porque o terceirizado faz parte da diversificação de portfólio da fábrica, contribuindo para que ela ganhe mercado tanto pelo posicionamento do estilo de cerveja quanto pelo posicionamento de marca produzida.
“Para um funcionário da Invicta é indiferente produzir um lote de Six O’Clock (IPA da Invicta) ou de Maracujipa” argumenta Bernardo.
No ano de 2018 a 2 Cabeças apresentou uma média mensal de produção girando em torno de 7 mil litros, com a Marcujipa sendo seu carro chefe. O principal mercado dos produtos da empresa sempre se estabeleceu no eixo Rio-SP com a liderança variando entre os dois estados.
Sobre a gestão do portfólio, Bernardo comenta que o planejamento de produção fica a cargo da Invicta, mas os produtos da 2 Cabeças ficam sob a autonomia da marca.
“Nós tentamos não colidir em estilos, apesar de possuirmos algumas cervejas com mesmo estilo prévias à parceria que criamos. Na visão deles, eles sempre enxergam o portfólio como um todo, não das duas marcas em separado. Quando o estoque desce a um determinado nível eles já programam uma produção para que não ocasione uma falta de produto.”
Essa dinâmica se torna muito favorável porque a fabricante tenta se aproveitar ao máximo de sua escala, otimizando aquisição de insumos, planejamento de produção e controle de estoques, evitando atropelos e descontinuidades de sua operação.
“Isso resolve um problema de agendamento de produção que ocorre as vezes quando algum lugar fica muito demandado por ciganos, daí você quer produzir e falta tanque, isso gera custo e desotimiza a produção para os dois lados.”
“Quando você atinge um determinado volume que não é mais produzir mil litros num mês, depois fica um mês sem produzir, aí sai de uma fábrica e vai pra outra, é importante uma parceria de uma cervejaria, senão sempre gera custo e riscos de inconsistência, as vezes a galera não percebe isso.”
O co-fundador da 2 Cabeças analisa alguns obstáculos que o mercado brasileiro ainda precisa ultrapassar para amadurecer e construir um segmento mais forte e consolidado e isso passará, segundo ele, por uma maior mobilização conjunta dos produtores.
“Um ponto que é importante para o nosso desenvolvimento é a questão das associações. Temos aqui no Brasil cervejarias gigantes que fazem um lobby pesado politicamente enquanto que as menores só conseguem fazer muito pouco ainda. Isso é uma coisa que depende também de tempo, mesmo nos EUA levaram anos e anos para que eles se organizassem nesse sentido.”
Bernardo finaliza destacando a importância, para as pessoas que tenham vontade de entrar no mercado de cerveja, de se diversificar o interesse de atuação neste segmento. Existem muitas posições com carências de investimento e competências a serem agregadas para o setor, para além do intuito de se lançar novas cervejarias.
“Ainda falta interesse das pessoas em trabalhar em alguns pontos da cadeia da cerveja,. Ainda tem muita gente, talvez por nosso mercado ser muito pequeno, querendo ter só cervejaria. Precisamos de pessoas querendo também investir em logistica, em agência publicitária especializada em cerveja, enfim a galera acaba que só enxerga ser dono da sua cervejaria. Certamente as associações vão ter um papel importante no amadurecimento disso.”
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Sobre o autor
Felipe Freitas é analista do mercado de cerveja, engenheiro químico, mestre em Gestão da Inovação pela UFRJ. Fundador e editor do portal Catalisi.