Baseado em conteúdo originalmente publicado em First We Fist
Embora as origens da cerveja se estendam até a Mesopotâmia e a deusa cervejeira Ninkasi, a produção artesanal norte-americana (que depois influenciou o mundo) é um fenômeno relativamente novo neste período de 7.000 anos.
Sim, hoje as cervejas ácidas com infusão de frutas e as Imperial Stouts envelhecidas em barris de bourbon estão obviamente anos-luz à frente das lagers de milho que os colonos ingleses estavam produzindo pela primeira vez quando desembarcaram na costa americana. Mas, para realmente entender o culto de adoração que a cerveja artesanal tem inspirado, primeiro é necessário voltar a uma era em que “beergeek” seria uma palavra sem nenhum significado.
A produção de cerveja americana foi inicialmente construída com base na grande tradição européia de cervejas simples de quatro ingredientes. Os primeiros exemplos comerciais de cerveja americana foram feitos por imigrantes alemães e tchecos, muitas vezes em Milwaukee, St. Louis e Nova York, que queriam levar as cervejas clássicas e as cervejas de sua terra natal para o novo território.
Estas cervejas eram aparentemente saborosas e feitas com grãos e lúpulos de qualidade – isto é, até que a Lei Seca começasse. No momento em que aqueles terríveis 13 anos terminaram, a cerveja americana caiu completamente de qualidade, com milho e arroz substituindo os grãos. De repente, essas cervejas alemãs e as pilsners tchecas eram agora cervejas “lite” de grandes corporações, destinadas a acompanhar os americanos enquanto comiam um jantar vendo TV.
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Felizmente, nos últimos 50 anos, surgiu uma nova indústria para combater a lavagem “corporativa” que dominou a América. Essas novas cervejas – como seriam chamadas – não eram deusas Ninkasi pela metade, mas sim homenagens aos novos “deuses da indústria”: titãs como Fritz Maytag, Ken Grossman e Jim Koch. Fabricantes de cerveja que valorizavam o sabor, os perfis de lúpulo e a regionalidade em relação à capacidade de beber sem graça e comercializada em massa. Da mesma forma, essas cervejas passaram a ser admiradas pelos mesmos tipos de consumidores que adoravam alimentos elaborados de maneira artesanal e independente.
Ao longo do caminho, vimos os presidentes influenciarem a produção caseira , os “homens de negócio” tentarem transformar cervejarias em dinheiro, e até então impensáveis estilos de cerveja exclusivamente “americanos” emergirem – tudo isso enquanto os EUA trabalhava para se livrar da péssima reputação de produzir cervejas aguadas, zombada pelos europeus.
Para explicar melhor esta jornada da cerveja norte-americana, segue abaixo toda a história dividida em 5 partes.
Fritz Maytag era bisneto de um magnata de eletrodomésticos e filho de um fazendeiro de laticínios de Iowa. Já definido para a vida quando ele se aproximava de seus trinta anos, o graduado de Stanford começou a procurar uma indústria onde ele poderia fazer sua própria marca.
Anchor Steam era sua cerveja favorita , e quando ele ouviu que sua cervejaria (Anchor Brewing Company) de 69 anos de idade estava prestes a fechar as portas, ele adquiriu uma participação de 51% nela por alguns milhares de dólares. Pensando que iria apenas aconselhá-los financeiramente, ele ficou chocado quando percebeu que ela estava quebrada e os credores rapidamente começaram a se aproximar dele com promissórias.
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Ele precisaria descobrir uma maneira de vender mais. Maytag imediatamente decidiu concentrar sua atenção em aumentar a qualidade de sua cerveja. Era 1965, e a cerveja nesse país significava principalmente as chamadas macro-cervejas “efervescentes, aguadas e amarelas”. Assim, ele deu início na construção de um portfólio impressionante de diversos estilos que realmente não existiam na América, como Anchor Porter (1972), Christmas Ale (1975) e Liberty Ale (1975) , esta última geralmente considerada como a primeiro IPA moderna do país.
Com persistência, à frente de seu tempo, Maytag levou quase uma década para obter lucro. A partir de então, o país estava finalmente se preparando para iniciar um mercado de cervejas “saborosas”, e muitos seguidores de Maytag estavam aparecendo.
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É claro que seria impossível para as pessoas seguirem o exemplo da Maytag se elas não tivessem permissão para aprimorar suas habilidades como amadores. Surpreendentemente, a fabricação caseira de cerveja acima de 0,5% de teor de álcoll era ilegal desde a Lei Seca e, em 1978, havia apenas 89 cervejarias na América.
Para os novos emergirem, uma ávida cena caseira também precisava começar. Em 1978, o Congresso aprovou uma lei, o HR 1337, revogando restrições federais e impostos sobre o “homebrewing para uso pessoal ou familiar, e não para venda”.
O presidente Jimmy Carter então assinou a lei e hoje provavelmente recebe mais créditos do que merece por “legalizar o homebrewing.” Seja qual for o caso, após alguns meses de HR 1337, Charlie Papazian havia fundado tanto a Brewers Association americana quanto a Homebrewers Association e logo publicaria o hoje famoso livro The Complete Joy of Homebrewing . De acordo com a Papazian, 90% das cervejarias artesanais começam com cervejeiros caseiros, que incluíram pioneiros como Jack McAuliffe (New Albion, 1976), Ken Grossman (Sierra Nevada, 1979) e Pete Slosberg (Pete’s Brewing Company, 1986).
Em meados da década de 1990, boa cerveja estava virando um bom negócio e microcervejarias estavam abrindo em todos os cantos. Entre 1985 e 1997, o crescimento das microcervejarias estava explodindo a uma taxa mínima de 20% ao ano, com anos como 1987 atingindo um crescimento de 100%. E muitas pessoas estavam ficando muito ricas fazendo isso.
Jim Koch, que começou sua empresa Boston Beer Company (Samuel Adams) em 1984, foi até capaz de abrir suas ações na Bolsa de Valores de Nova York em 1995. (Hoje em dia ele é um bilionário).
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Investidores e executivos de finanças queriam entrar em ação, vendo cerveja como um esquema fácil de enriquecer rápido. Quem se importa se eles realmente gostavam do produto? Claro, isso levou a muitas operações nascerem da noite para o dia, muitas vezes produzindo cerveja de baixa qualidade que geralmente eram feitas sob contrato e depois enviadas para as lojas o mais rápido possível. Em 1997, havia 1.396 cervejarias nos Estados Unidos e, francamente, muitas delas eram terríveis. A próxima década veria inúmeras cervejarias fecharem, muito poucas novas abertas, e as vendas de cerveja começarem a cair em comparação com as vendas de vinhos e destilados. Uma indústria que já esteve em um foguete para a lua estava em desaceleração.
Alguém poderia argumentar que o estouro da bolha das microcervejarias era uma coisa boa, pois separaria o joio do trigo. As cervejarias que permaneceriam e floresceriam seriam uma nova onda focada em fazer cerveja exclusivamente “americana”. Enquanto as microcervejarias que tiveram sucesso nos Estados Unidos estavam focadas em colocar novas caras no mundo antigo, esses novatos dos anos 90 estavam reinventando totalmente a roda.
A maneira mais fácil de manifestar isso foi indo aos extremos. Fazer cervejas que eram incrivelmente lupuladas ou super alcoólicas ou cheias de ingredientes excêntricos – ou às vezes as três coisas juntas.
As cervejarias que fizeram a sua marca durante este tempo eram por exemplo Dogfish Head (iniciada em 1995), um dos primeiros pioneiros nas chamadas “cervejas culinárias” que utilizavam damascos, algas, ervas e especiarias, e até mesmo lagostas cozidas. Ou a Stone Brewing (1996), famosa por bombas de lúpulo com nomes ousados como Arrogant Bastard e Ruination. Cervejarias como essas, e até menores, como Russian River e The Lost Abbey, logo trariam os geeks para dentro do jogo, que pareciam gostar de colecionar cervejas tanto quanto gostavam de realmente beber.
As coisas haviam mudado e os EUA finalmente tinham uma cena de cerveja para se orgulhar – sendo ela completamente diferente do que estava acontecendo no resto do mundo.
A indústria das chamadas microcervejarias ou cervejas artesanais dos EUA floresceu como uma rejeição as cervejas “lite” corporativas que dominavam uma América pós-Proibição – e isso funcionou!
Em 1987, a produção de cerveja artesanal representava apenas 0,1% das vendas totais de cerveja. Hoje, ela representa quase 24% do mercado de mais de US $ 100 bilhões dos EUA.
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Eventualmente, as grandes marcas não tiveram escolha senão adotar uma estratégia do tipo “se você não pode vencê-los…”. A princípio, isso significava a introdução de cervejas artesanais desenvolvidas in company como Red Wolf (1994), Michelob Amber Bock (1995) ambas da Anheuser-Busch (produtora da Budweiser) e, a de maior sucesso, Blue Moon (1995) da Miller Coors.
Mais tarde, a estratégia avançou para comprar seu caminho para o jogo, começando pela Anheuser-Busch adquirindo uma participação de 25% na Redhook Ale Brewery em 1994 e então (já como AB InBev) comprando a Goose Island por US $ 38,8 milhões em 2011. Enquanto esta última foi um choque para o negócio quando ocorreu pela primeira vez, em 2015, a Constellation Brands (fabricante da Corona) compraria a Ballast Point por US $ 1 bilhão.
Atualmente a AB-Inbev possui 10 cervejarias artesanais nos EUA, acompanhada também por Heineken, Molson Coors e Constellation Brands na mesma estratégia, só que num menor número.
Os EUA contava ao final de 2018 com 7.450 cervejarias. A revolução iniciada pelos pequenos empreendedores em busca de sabor na cerveja nos Estados Unidos se espalhou pelo mundo e o mercado da cerveja nunca mais foi mesmo desde então.
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Sobre o autor
Felipe Freitas é analista do mercado de cerveja, engenheiro químico, mestre em Gestão da Inovação pela UFRJ. Fundador e editor do portal Catalisi.